quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Passos de Anchieta

" De todos, o caminho mais longo é o que leva da mente para o coração."
Eu, Miriam, Raquel e Márcia resolvemos fazer a caminhada coordenada pela ONG Abrapa (Associação Brasileira dos Amigos do Padre Anchieta) em Junho de 2001. Fizemos o mesmo trajeto que o padre Jesuíta fez a mais de 400 anos. São aproximadamente 105 quilômetros.
Diante da Catedral Metropolitana de Vitória, pegamos nossas credenciais (onde seriam carimbadas as diversas etapas vencidas), bonés e camiseta com o mapa do caminho a ser percorrido e já sentindo o clima dos próximos três dias. Muita gente reunida, animada, participando do aquecimento, tentando se enturmar, rindo e cantando durante a bênção dada pelo padre, que desejou uma caminhada tranquila e sem transtornos.
A procissão "se arrastando que nem cobra pelo chão", desce até o porto, passa em frente ao Palácio do Governo até chegar aos ônibus que nos tirariam da Ilha. São quase três mil pessoas. Enormes filas, sem reclamações, sem estresse, sem mau humor. Descemos em Vila Velha e começamos a subida até o Convento da Penha, pela Ladeira das Sete Voltas. Caminho penoso e de aclives acentuados tornam o trecho bastante cansativo. O silêncio só é quebrado pelo canto dos pássaros e o arquejar dos caminhantes. Lá de cima se descortina uma paisagem de tirar o fôlego. Descemos por outra estrada e, na área privativa o Exército, uma banda nos aguarda, dando as boas vindas e os soldados mais bonitos do batalhão ficam em posição de sentido, demonstrando apreço aos peregrinos.
Morro Moreno, praias da Ribeira e da Costa, travessia da Ponte da Madalena toda enfeitada de buquês de flores pelos moradores que nos aguardavam, Barra do Rio Jucu... A chuva começa a ameaçar nossa próxima etapa. Os pés doem, a musculatura das pernas parece em brasa e a cãibra ameaça a Raquel. Vamos em frente que atrás vem gente...
Em cada ponto de parada, enfermeiros, bombeiros e voluntários cuidam dos pés dos caminhantes. Furam as bolhas, fazem curativos, massageiam os mais doloridos, dão conselhos, incentivam, oferecem frutas e água. Sorriso e solidariedade é o que não falta. É como se fôssemos parentes ou velhos amigos. Os últimos quilômetros foram difíceis, mas afinal chegamos na Ponta da Fruta. Fomos saudadas com fogos de artifício, tapete vermelho, flores e um belo rapaz, vestido de Padre Anchieta, abençoava quem conseguiu chegar. A Miriam beijou-lhe as mãos.
De carona, fomos direto para a Pousada que reservamos por telefone. Mofo à vontade, banheiro meio limpo-meio sujo e camas razoáveis. Pelo menos isso. Obedecendo à Marcia, que é médica, fizemos vinte minutos de alongamento, jantamos ali perto e trocamos idéias sobre o caminho e as dores de cada uma.
Às cinco horas acordamos, fizemos mais alongamento e fomos tomar o café. Ali ficamos sabendo que essa era uma etapa difícil. Já havia andarilho com pé enfaixado, cajados e bengala para apoio e joelhos inchados. Recebemos um pequeno lanche para levar e começamos a jornada. Cada um caminha no seu ritmo. O importante é chegar.
O Parque Ecológico Paulo Vinhas é uma reserva que reúne Mata Atlântica, restinga e algumas lagoas. Biólogos nos pedem para não pisar fora da trilha para não estragarmos a frágil vegetação. Todos em fila. Ninguém ultrapasssa ninguém. As pessoas conversam com quem está às suas costas ou à sua frente, sem ver o rosto do interlocutor. O que importa é vencer obstáculos com cuidado para não cair. E, se cair, o companheiro de jornada, com certeza, vai ajudar. Se alguém precisa fazer xixi, avisa e ninguém se vira para olhar. Não tem onde se esconder. É praia de um lado e vegetação rasteira de outro. Existe um acordo tácito entre as pessoas. A areia fofa dificulta a caminhada. Por fim chegamos à Lagoa dos Caraís. A água é fria, cor de coca-cola, mas não podemos parar mais que dez minutos para não agravarmos as dores musculares. Um caminhão de cocos verdes e gelados nos aguarda. Logo estamos pisando as areias da Praia de Setiba Pina (Setibão). Muita gente se aproxima dos andarilhos, oferecem fruta, água e sorrisos.
Raquel não consegue mais andar por causa das cãibras. Vai de ônibus para Guarapari, nos esperar no hotel. "A mais difícil de todas as decisões: Voltar atrás - não para desistir, mas para começar de novo. Recomeçar."*
Setiba, Santa Mônica, Perocão e sua ponte também enfeitada de flores e fitas. Depois de longa e exaustiva subida, entramos na mata por uma trilha estreita e perigosa. Descemos por uma imensa pedra, coberta de cactus, arriscando a escorregar, até chegarmos às Três Praias de águas azuis e calmas e bares acolhedores.
Seguir adiante é a palavra de ordem. As dificuldade profetizadas em Ponta da Fruta começam a se materializar. O grande bloco de pedra a ser transposto é meio assustador. A maré baixa nos favorece. Não há a opção de voltar e as fendas profundas são mesmo perigosas. Custamos a vencer esse pedaço do caminho até chegarmos à Praia da Cerca e a Praia do Morro, nossas velhas conhecidas que estavam mais compridas do que nunca, pelo menos para nossos corpos cansados e nossos pés doloridos. Só conseguimos o carimbo na credencial na Praia das Areias Pretas. No hotel, a Raquel nos esperava dormindo. Alongamentos, gemidos, risos, banho, fome. Muita fome! No Max Peixadas, as panelas de barro fervilhantes com a moqueca capixaba, o pirão, a pimenta e o chope gelado nos dão o conforto e o alento que precisamos nesse momento.
Cinco horas e já de pé para novos alongamentos. Untamos os pés com vaselina liquida e envolvemos cada dedo com esparadrapo, pois as temíveis bolhas já estão presentes, para nosso tormento. Saímos em direção ao Edifício Center, de onde se tem a melhor vista de Guarapari. Lá de cima vemos a Praia do Ipiranga e do Riacho, a Samarco, onde os navios recebem todo o minério para o exterior. Agora é caminhar pelo asfalto e caminhar por ele é arriscado. A tensão domina todo o grupo. Os criadores de cavalos Campolina nos acompanham por um bom tempo, tocando o berrante de quando em quando. Enseada Azul, Meaípe, Lagoa de Maembá. Um grupo de motociclista nos incentivam. Aplaudidos, os caminhantes prosseguem debaixo de uma garoa fria. Por uma estradinha de terra chegamos à Praia do Ubu, onde crianças vestidas de índio nos aguardam para fotos e mais sorrisos. Pescadores de aparência modesta nos oferecem graciosamente pipocas, mamão e água. Agradecemos e tocamos em frente. Ainda tem muito chão a ser vencido. Descansamos por alguns minutos num lugar chamado Guanabara, uma linda pousada amarela, uma praia de rara beleza e mais carinho para quem se sente no limite da exaustão. O caminho agora é ladeado por pequenas árvores, casebres cobertos de palha, um coqueiro aqui e ali, vacas magras pastando mansamente.
Praia dos Castelhanos, tempo fechado. Eu já me sentia um passarinho de tanta fruta comida pelo caminho... Agora começa a reta final. Descemos vagarosamente pra Anchieta. A praia é feia, barrenta, destruída pela última ressaca. Tirei a sandália. Não aguento as dores na bolha estourada. Vou de meias até o final.. O povo da cidade se mostra alegre, aplaude quem chega, oferece o que tem. Água, maçã, chá...
O Santuário de Nossa Senhora da Assunção fica pequeno pra tanto caminhante. Voluntários ajudam a quem precisa de massagem, curativos nas bolhas dos pés e das assaduras nas coxas dos mais gordinhos. Todos, apesar de exaustos, estão felizes. Rezamos um pouco, pegamos nosso diploma de peregrino e fomos para o hotel. Pagamos cinco Reais para tomar um banho e trocar de roupa.
Esperamos pelo táxi num modesto restaurante onde comemos alguns ovos fritos e um macarrão horroroso, com cerveja gelada. Fomos direto para o aeroporto de Vitória onde embarcamos pra Belo Horizonte.
Aprendemos que a solidariedade é uma lei do caminho. Outra é a humildade de pedir ajuda.
"Uma travessia não termina em qualquer lugar, mas num ponto preciso, escolhido e alcançado. Enquanto não se toca esse ponto , travessia nenhuma existe." *
Este post vai para a Miriam, que durante todo o percurso nos proporcionou ótimos momentos, risadas descontroladas e piadas inéditas, como a do caixão cor-de-rosa.
* Paratii - Amir Klink

domingo, 23 de setembro de 2007

BONANÇA - Eu conheço. E você?

" Ardia aquela fogueira, que me esquentava a vida inteira, eterna noite, sempre a primeira festa do interior" Moraes Moreira/Abel Silva
Estava curiosa para participar de uma festa do interior.
Praticamente me ofereci para ir com a família "festeira" para Bonança, antiga Palmeira, município de Ibiracatu, distante quase 200 quilômetros de Montes Claros. Quarenta são de estrada de terra, melhor dizendo, de areia. Solta, vermelha e muito fina. Depois de muito preparo, três mil bandeirinhas de papel de seda, trocentos metros de correntes de crepon colorido, arrecadação de dinheiro com os amigos e parentes, confecção de bonecos para a decoração do salão, organização das roupas recebidas em doação e compra das prendas para as crianças partimos dia 28 de junho de 2003 para a tão esperada festa de São Pedro.
Um pneu furado fez a alegria do Marcelo e do Leo que tiveram de brigar com um porta-malas lotado, um parafuso teimoso e o sol escaldante do sertão.
Bonança é um pequeno povoado, com uma igrejinha amarela plantada no meio de um conjunto de casinhas pequenas, uma caixa d´água, uma quadra de esportes e uma construção pintada de azul, que é o salão de festas recém-construído. Três grandes e frondosas árvores, uma das quais plantadas pelo velho José Vicentino Ferreira, avô da Renata há mais de quarenta anos, bancos de madeira e um velho carro de bois. Tudo avermelhado pela areia fina, que é uma constante na vida de quem mora no lugarejo. As casas são rente à rua, janelas e portas de madeira, muitas sem muros. Os jardins são plantados com as poucas flores que resistem ao clima quente e seco. Os carros são raros. Alguns cavalos descansam à sombra, moradores curiosos chegam às janelas, outros acenam para quem chega, com o melhor dos sorrisos. Descemos do carro e já encontramos a Orlene limpando a entrada de casa e nos recebendo com alegria. Quase que imediatamente entra a Marlene e mais de uma dúzia de pessoas gritando e rindo, nos abraçam com carinho enquanto os foguetes de boas vindas sobem aos céus, anunciando para todos da cidade que acabamos de chegar.
Em Bonança a vida corre lenta. O vilarejo é apenas um amontoado de casinhas em volta de uma igreja muito simples e antiga e uma quadra de esportes construída por algum político da região. Para a festa deste ano foi construído um salão de festas, também no meio da vila. A areia que cobre todas as ruas é vermelha e entra nos olhos, na boca e cobre tudo que você vê, comida, roupas, cabelos... O vento sopra com força e espalha os grãozinhos por todos os cantos de Bonança. Ali se cria gado e a lavoura é muito pobre. A seca impera no norte de Minas, principalmente nesta época do ano. Se a cidade é minúscula, o coração de seus moradores é maiúsculo. Recebem com prazer, acolhem a todos com um sorriso e a inesgotável disposição para um dedo de prosa. Com linguajar típico nos contam histórias do passado, sempre com aquele tom mineiro, cheio de mistérios e superstições.
Fiz coisas que jamais pensei em fazer: estiquei cordões de bandeirinhas coloridas em plena rua, enfeitei um jegue (uma jeguinha?) para a cavalgada de São Pedro, ajudei e ornamentar o mastro do padroeiro com papel crepon nas cores do santo, participei de um leilão onde se podia arrematar doces, bandejas de comidas, carnes assadas, bezerros amarrados a postes de madeira e os lindos pés de bala, que são galhos de pereira enfeitados de papel de seda e cheios de balas, amendoins e pipocas, a exemplo das árvores de natal. Esses pés de bala são tradicionais na festa de São Pedro. Segui a procissão, ouvindo os cantos tradicionais e admirando as pequenas velas de cera de abelha jataí, acesas nas mãos dos devotos, espalhando seu cheiro característico, um misto de mel e fumaça.
A festa incluía comida e bebida para todos da cidade, oferecidos pela família "festeira" Amador de Melo, além do café com biscoito. Nunca vi tanta comida. Um boi foi sacrificado para a ocasião e preparado com arroz, no fogo de chão espalhados pelo quintal da casa, debaixo das velhas laranjeiras e pés de pinha. Biscoitos de peta, ginete e de goma fizeram a alegria da criançada. Todos, apesar da humildade do lugarejo, aguardavam o que lhes era oferecido com tranqüilidade, conversando com os amigos e curtindo aquele momento tão raro de alegria e confraternização. E a dona Geralda não queria que os convidados (a cidade inteira), fossem servidos através da janelinha de uma das casa. Queria que todos entrassem na casa. Como? Eram mais de quinhentas pessoas... Mas pelo menos as amigas dela tiveram de entrar e sentar para serem servidas, atendendo a exigência da matriarca.
No dia seguinte à festa, fui junto com o Leo, a Renata e algumas crianças da região num lugar incrível, chamado Chupa. É uma longa caminhada onde se percebe claramente a fusão entre o cerrado e a caatinga. Nunca tinha visto este tipo de vegetação e fiquei observando aquelas árvores secas e cobertas de espinhos, que parecem mortas, mas que com as primeiras chuvas vão explodir em brotos, flores e sementes. O Chupa é um enorme abismo de pedra lisa por onde corria um rio caudaloso e que hoje encontra-se totalmente seco. Pelo que contam os antigos moradores havia ali um redemoinho onde as pessoas eram chupadas e acabavam morrendo, engolidas pelas águas. Meu filho, as crianças e a Renata desceram ao fundo da grota e andaram até onde existe um impressionante paredão cheio de centenárias barrigudas, que são árvores enormes e típicas da região. Faltou coragem para que eu os acompanhasse nesta pequena aventura.
Foram três dias de muita festa, forró, crianças felizes com o movimento de pessoas estranhas. comida boa, cerveja gelada, picanha gorda (de dois pelos) e carne de sol assadas na brasa e a famosa cachaça da região.
A viagem de volta demorou doze horas. Voltei pensando no tamanho desmedido desse nosso país, na falta de recursos e de conforto desses brasileiros que sobrevivem aos políticos e suas promessas jamais cumpridas, nos seus hábitos tão diferentes, na pureza de sua alegria ingênua e, principalmente, na hospitalidade dessas pessoas que não têm nenhum receio de abrir suas casas e corações para os forasteiros. Não existe neste sertão das Geraes a desconfiança, a pressa, o medo e insegurança que vivenciamos no dia-a-dia das grandes cidades.

Esse post vai para a Evilane, que lá da Itália, ainda chora de saudades desse lugarzinho que fica , segundo ela, "atrás do mapa".