sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Crônica de uma Mãe Urbana

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é CORAGEM" Guimarães Rosa


Na Semana Santa de 2003, finalmente, fomos para Planaltina, próximo do Distrito Federal, visitar nosso filho caçula, que estava morando na Reserva Ecológica de Águas Emendadas onde desenvolvia seu Projeto, com vistas à sua dissertação do Mestrado.
O cerrado e suas árvores retorcidas, a terra vermelha, o perfume do araticum maduro e o canto dos pássaros têm realmente uma certa magia. Os lugares são lindos. As veredas de buritis, alagadas pelas últimas chuvas, empresta ao lugar um certo ar de encantamento. Os pés de pequi estão por toda parte e prometem fartura nos próximos meses. Pequenos arbustos de murici, araçá e cagaita estão floridos a espera dos frutos doces e cheirosos. A vegetação mais densa e úmida da mata de galeria contrasta com a mais esparsa da reserva. É ali que os gaviões e mamíferos, mais difíceis de serem vistos, vivem e se reproduzem.
Fomos à área onde o Leo desenvolve seu trabalho e pudemos ver de perto os pássaros capturados na fina rede de seda e anilhados por ele e seus colegas pesquisadores. Fotografamos os filhotes de uma coruja bem grande, que ficou de longe nos olhando ameaçadoramente enquanto os pequerruchos eram examinados. Me diverti com os bandos de papagaios barulhentos, me encantei com o casal de pica-paus do pescoço dourado, com as tesourinhas, beija-flores e outros tantos pássaros com suas penas de colorido exuberante. Vi ninhos ocupados por pombas silvestres e seus ovos branquinhos, que foram cuidadosamente medidos, outros enormes, como os dos graveteiros, por aqui chamados de guaxos, e pude sentir toda a força de uma natureza protegida e preservada. Ouvi os relatos dos encontros com os lobos guarás, com os tamanduás-bandeira, com a suçuarana, com a cascavel e com a perigosa jararaca. Vi um tatu galinha, que se virou rapidamente e sumiu por dentro do mato entre uma nuvem de poeira vermelha e, com o susto, senti o quanto somos urbanos e mal preparados para esse tipo de vida. Receamos pela segurança do filho querido, esquecendo-nos que atravessar o centro da cidade ou mesmo ir para a Universidade é uma aventura bem mais arriscada que conviver com o canto dos pássaros, com os horizontes tingidos de rosa, com o calor do sol e com a doce agressividade do cerrado brasileiro. Realmente é um lugar diferente do caos das metrópoles onde nos acostumamos a viver. Sabemos que riscos existem, lá e aqui. Que viver é algo extremamente perigoso. Mas numa reserva ecológica os riscos são calculados, enquanto que nas grandes cidades não temos segurança nem pra chegar até a esquina, temendo um assalto ou uma bala perdida.
Interessante notar que, apesar da enorme quantidade de bichinhos como mariposas de todos os tamanhos, abelhas e vespas, formigas e besouros, lagartas e cigarras, os pernilongos e carrapatos não existem por lá. As aranhas são enormes e assustadoras e sempre dão as caras nos lugares mais escondidos da casa e mesmo no meio do mato, entre as folhas secas espalhados pelo chão.
Apesar da saudade que sentimos do Leo, sabíamos que ali ele estava feliz, realizando um sonho e um projeto super importante para seu futuro. Foi ótimo poder partilhar com ele seu novo habitat, foi bom ver como encarou com garra, responsabilidade e competência o trabalho pesado do campo e o trabalho intelectual exigido pela pesquisa que estava realizando. Foi muito bom poder compartilhar sua alegria ao descobrir um novo ninho a ser registrado, o canto de uma ave até então desconhecida , uma pegada na terra vermelha: - Será um teiú? Um tatu? Um veado?
E depois... cozinhar, descongelar a geladeira, enterrar o lixo orgânico, separar o lixo seco a ser levado para a cidade, trancar a casa, preparar a "matula" para o dia seguinte, lavar a louça, fazer as compras em Planaltina, estudar, estudar, estudar...registrar o trabalho do dia...anotar...rever anotações e ler..ler... e ler mais um pouquinho antes de, finalmente, ir dormir. Dormir para acordar às 4 horas, em plena madrugada,vestir a roupa de campo, pegar a bicicleta e seguir, com uma lanterna na cabeça , para a área de pesquisa, que fica distante 10 quilômetros da casa onde mora. Ainda resta uma grande extensão de “picadas” a serem abertas com o facão, apesar dos muitos já abertos e que deixaram as mãos do rapaz cheias de calos e cortes.
Tenho certeza que ele ainda tem muito a aprender e muito mais a ensinar aos pais que não conseguem esconder o orgulho de tê-lo como filho.
Nosso filho é nosso herói!!!

Para o Leo, passarinheiro de carteirinha e viciado em biologia....