Essa carta foi escrita para o meu amigo Maurílio, que numa noite de desespero, entregou-me algumas folhas de papel onde rabiscara a angústia que lhe ia na alma.
Meu caro amigo,
Estou brigando com as palavras, com o computador e com o seu angustiado rascunho... Escrever sobre o sentimento alheio é complicado.
Complicado não é bem o termo. Impossível seria a palavra mais apropriada.
No dia 17 de março de 2007 você e seu irmão chegam ao Rio para visitar o tio que foi internado em caráter de urgência. Hospital, CTI, sofrimento.
Velhice, arrogância, miséria humana.
Solidariedade de poucos. Interesse, ambição de muitos.
Ele é homem duro, personalidade difícil, forjada na infância tão distante e no sofrimento das últimas três décadas. Mas antes desse trágico acidente que roubou dele os sonhos e a esperança personificados na figura da filha, o mundo lhe sorria.
Sorria na forma de dinheiro, poder, amigos influentes...
Amigos? Onde estão todos eles?????
A família, de longe, invejava sua posição social, seu apartamento de frente para a praia mais bonita do mundo, sua casa em Teresópolis cercada pela serra e tendo, apontado para ele o Dedo de Deus.
Esse homem trabalhou duro, trabalhou muito. Quando, finalmente pode desfrutar de tudo o que plantou ... acontece o maldito acidente.
Bradou contra todos, contra tudo, contra Deus.
Se arvorou ser, ele próprio, o senhor da verdade, da vida, do poder infinito..
Da verdade só dele. Da verdade cruel e inaceitável.
A vida de sua filha, da sua mulher e a sua própria vida haviam mudado para sempre.
Fez da sua fragilidade e sofrimento uma barreira intransponível. Ninguém conseguia ultrapassá-la. Chegar próximo. Confortá-lo...
Os abraços, os telefonemas, as cartas... tudo esbarrava nessa barreira de aço. Ele se blindou contra o mundo. Com dinheiro, conseguiu ajudar irmãos, sobrinhos, cunhados, interesseiros de plantão que dele se acercavam com o intuito de “receber algum”. Mão aberta, não se furtava em mandar cheques de presente para os que se casam, os que morrem e os que ficam doente .
Agora, você está lá para vê-lo e tentar resolver os problemas relativos à sua doença, à saúde da filha e à saúde de sua mulher, já velha e apresentando vários problemas de saúde sem nenhum cuidado, próprios dessa fase da vida..
Você, meu amigo, deixou para trás sua esposa e filhos, sua mãe idosa, seus negócios, sua vida...
E começa a enfrentar situações para as quais você definitivamente não estava preparado, ninguém está. Tentar resolver o que, aparentemente não tem solução.
O tio, com idade avançada, com um AVC grave, internado num CTI de um hospital desconhecido, em uma cidade estranha.
A filha dele num estado lastimável, o frágil corpo aberto em escaras, o olhar vazio, os claros sinais da necessidade urgente de assistência especializada: exames, muitos e vários exames... Fisioterapia, fonoaudiologia, diagnóstico para os assustadores nódulos que povoam seus seios.
A tia, já com mais de 90 anos enfrenta os problemas inerentes à idade, dificuldades motoras, anos sem assistência médica.
A única pessoa que ainda pode lhe prestar alguma ajuda é a antiga e fiel empregada de muitos anos. Ela e o marido enfermeiro se revezam nos cuidados dos patrões. Ela sinaliza as dificuldades dos últimos meses para lidar com o dono da casa. Os banhos da filha e da mulher cada vez mais raros, pela própria deterioração da saúde de todos que habitam aquela luxuosa solidão em Copacabana. A alimentação deficiente de ambas e dele próprio, os remédios que não são prescritos, o médico que não existe, o gênio terrível se acentuando dia-a-dia. A prepotência, a intolerância diante de qualquer alternativa que não seja a determinada por ele.
Há ainda as contas a pagar. Do hospital, dos enfermeiros particulares que o acompanham, os salários dos empregados, as incontáveis “mesadas” pagas aos sanguessugas de plantão, as despesas da casa de Teresópolis, compras a serem feitas para o apartamento do Rio....
A angústia toma conta de você de uma forma brutal. - Não quero fazer isso, não posso, não tenho condições, não sei...
A cidade é estranha, a situação bizarra. .
O tio tem uma falsa melhora, se revolta contra a doença, contra os médicos, contra o hospital. E o pior. Contra você. Agredido com palavras duras, ofensas não merecidas. Contra todas as expectativas, “no grito,” você consegue deter a fúria desse homem poderoso, agora tão frágil, tão carente, tão necessitado de um abraço, de um ombro onde chorar suas dores, seus remorsos, sua vida já vivida.
E esse abraço veio. Forte, apertado. As lágrimas também afloram e descem para lavar em parte essa revolta. Essa angústia de se ver no fim. De se ver morrendo. De ser impotente perante o inexorável fim...
Você o leva de volta para casa. A fala ininteligível demonstra que o pior está por vir. Acredita estar em Belo Horizonte e que a mãe o espera.
Logo na entrada do luxuoso prédio dá mostras de reconhecer o porteiro. Já em casa, abraça demoradamente a mulher, a quem chama carinhosamente de Nega e diz estar morrendo de saudades.
O enfermeiro e começa a cuidar dele.
Mas a volta para o hospital se faz necessária. Os exames demonstram que a lesão foi extensa e irreversível. O CTI é inevitável.
...Já são vinte e oito dias aqui nessa cidade. Sei, tenho certeza, que o inferno tem vista pro mar.
Foi assim, meu amigo, que você ligou para mim e, aos prantos, desabafou. Pediu que eu escrevesse o que você sentia naquele momento. Desespero. Desesperança.
O fisioterapeuta da filha, lhe contou um pouco sobre as emoções do tio . A sensação de desamparo que sentiu quando a irmã de Belo Horizonte faleceu, o choro e a saudade incontidos. Hoje, você consegue avaliar a carência afetiva desse homem que se escondia por detrás dessa imagem autoritária e prepotente.
Ao dar comida na boca da filha que vegeta há tantos anos, você consegue perceber como é fácil um pai enlouquecer de dor, revolta, impotência diante do fato consumado. E aí, nessa hora, você resolve fazer o que tem de ser feito.
O que já deveria ter sido feito.
Há muito tempo. E deveria ter sido feito por ele.
Por esse pai idoso, já insano e sem condições de tomar decisões lúcidas, sensatas e coerentes com a realidade.
Interna, no mesmo hospital onde ele está inconsciente, a filha e a mulher, para que tenham seus males diagnosticados, suas feridas curadas, seus sofrimentos abrandados por medicamentos, carinho e cuidados.
Sabe que a mulher sempre lutou por isso como pôde. E ela podia muito pouco. Sabe também que ele impediria você de fazer isso, se estivesse em condições de impedí-lo.
Você toma as providências necessárias, faz os pagamentos, compra uma cadeira de rodas, uma cadeira de banho, define com a fiel empregada o que pode e o que não pode ser feito.
Consegue da tia, que em sua idade avançada se mostra surpreendentemente lúcida e lhe passa algumas informações para facilitar a tarefa que lhe foi conferida, se orienta com advogados, foge dos interesseiros, procura prestar contas de tudo, busca a ética como sua meta principal.
Já se vão mais de três meses. Suas idas e vindas ao Rio vão se tornando rotina. Os fiéis empregados, agora os únicos amigos confiáveis, vão lhe dando as notícias, os médicos ligam para você. Os poucos e bons amigos dele também fazem contato e prestam solidariedade.
E você, meu amigo, hoje está mais consciente do seu papel.
Papel esse que você não escolheu. Mas que, por caminhos desconhecidos, acabou caindo em suas mãos. A verdade é que você tem sido forte o bastante para carregar esse fardo com serenidade, bom senso e coragem.
Saber como você se sentiu e ainda se sente é impossível.
Mas sei o quanto você gosta desse tio e que tudo fará de para proporcionar a ele o conforto e dignidade possíveis nessa atual situação. Sei que está com a consciência tranqüila do dever cumprido. Que sofre por não poder fazer mais por ele e pelas duas mulheres, que agora são parte intrínseca do problema e, de um modo ou de outro, dependem de você.
A confusão de sentimentos vai, vez por outra, bater à sua porta. E você vai saber lidar com ela.
Tenho certeza disso.
Um abraço.
Força e coragem!
junho de 2007
O tio faleceu no final do ano, a filha vegeta em uma cama e a mulher, agora saudável, vive com sua fiel empregada no apto que tem vista pro belo mar de Copacabana.
Meu caro amigo,
Estou brigando com as palavras, com o computador e com o seu angustiado rascunho... Escrever sobre o sentimento alheio é complicado.
Complicado não é bem o termo. Impossível seria a palavra mais apropriada.
No dia 17 de março de 2007 você e seu irmão chegam ao Rio para visitar o tio que foi internado em caráter de urgência. Hospital, CTI, sofrimento.
Velhice, arrogância, miséria humana.
Solidariedade de poucos. Interesse, ambição de muitos.
Ele é homem duro, personalidade difícil, forjada na infância tão distante e no sofrimento das últimas três décadas. Mas antes desse trágico acidente que roubou dele os sonhos e a esperança personificados na figura da filha, o mundo lhe sorria.
Sorria na forma de dinheiro, poder, amigos influentes...
Amigos? Onde estão todos eles?????
A família, de longe, invejava sua posição social, seu apartamento de frente para a praia mais bonita do mundo, sua casa em Teresópolis cercada pela serra e tendo, apontado para ele o Dedo de Deus.
Esse homem trabalhou duro, trabalhou muito. Quando, finalmente pode desfrutar de tudo o que plantou ... acontece o maldito acidente.
Bradou contra todos, contra tudo, contra Deus.
Se arvorou ser, ele próprio, o senhor da verdade, da vida, do poder infinito..
Da verdade só dele. Da verdade cruel e inaceitável.
A vida de sua filha, da sua mulher e a sua própria vida haviam mudado para sempre.
Fez da sua fragilidade e sofrimento uma barreira intransponível. Ninguém conseguia ultrapassá-la. Chegar próximo. Confortá-lo...
Os abraços, os telefonemas, as cartas... tudo esbarrava nessa barreira de aço. Ele se blindou contra o mundo. Com dinheiro, conseguiu ajudar irmãos, sobrinhos, cunhados, interesseiros de plantão que dele se acercavam com o intuito de “receber algum”. Mão aberta, não se furtava em mandar cheques de presente para os que se casam, os que morrem e os que ficam doente .
Agora, você está lá para vê-lo e tentar resolver os problemas relativos à sua doença, à saúde da filha e à saúde de sua mulher, já velha e apresentando vários problemas de saúde sem nenhum cuidado, próprios dessa fase da vida..
Você, meu amigo, deixou para trás sua esposa e filhos, sua mãe idosa, seus negócios, sua vida...
E começa a enfrentar situações para as quais você definitivamente não estava preparado, ninguém está. Tentar resolver o que, aparentemente não tem solução.
O tio, com idade avançada, com um AVC grave, internado num CTI de um hospital desconhecido, em uma cidade estranha.
A filha dele num estado lastimável, o frágil corpo aberto em escaras, o olhar vazio, os claros sinais da necessidade urgente de assistência especializada: exames, muitos e vários exames... Fisioterapia, fonoaudiologia, diagnóstico para os assustadores nódulos que povoam seus seios.
A tia, já com mais de 90 anos enfrenta os problemas inerentes à idade, dificuldades motoras, anos sem assistência médica.
A única pessoa que ainda pode lhe prestar alguma ajuda é a antiga e fiel empregada de muitos anos. Ela e o marido enfermeiro se revezam nos cuidados dos patrões. Ela sinaliza as dificuldades dos últimos meses para lidar com o dono da casa. Os banhos da filha e da mulher cada vez mais raros, pela própria deterioração da saúde de todos que habitam aquela luxuosa solidão em Copacabana. A alimentação deficiente de ambas e dele próprio, os remédios que não são prescritos, o médico que não existe, o gênio terrível se acentuando dia-a-dia. A prepotência, a intolerância diante de qualquer alternativa que não seja a determinada por ele.
Há ainda as contas a pagar. Do hospital, dos enfermeiros particulares que o acompanham, os salários dos empregados, as incontáveis “mesadas” pagas aos sanguessugas de plantão, as despesas da casa de Teresópolis, compras a serem feitas para o apartamento do Rio....
A angústia toma conta de você de uma forma brutal. - Não quero fazer isso, não posso, não tenho condições, não sei...
A cidade é estranha, a situação bizarra. .
O tio tem uma falsa melhora, se revolta contra a doença, contra os médicos, contra o hospital. E o pior. Contra você. Agredido com palavras duras, ofensas não merecidas. Contra todas as expectativas, “no grito,” você consegue deter a fúria desse homem poderoso, agora tão frágil, tão carente, tão necessitado de um abraço, de um ombro onde chorar suas dores, seus remorsos, sua vida já vivida.
E esse abraço veio. Forte, apertado. As lágrimas também afloram e descem para lavar em parte essa revolta. Essa angústia de se ver no fim. De se ver morrendo. De ser impotente perante o inexorável fim...
Você o leva de volta para casa. A fala ininteligível demonstra que o pior está por vir. Acredita estar em Belo Horizonte e que a mãe o espera.
Logo na entrada do luxuoso prédio dá mostras de reconhecer o porteiro. Já em casa, abraça demoradamente a mulher, a quem chama carinhosamente de Nega e diz estar morrendo de saudades.
O enfermeiro e começa a cuidar dele.
Mas a volta para o hospital se faz necessária. Os exames demonstram que a lesão foi extensa e irreversível. O CTI é inevitável.
...Já são vinte e oito dias aqui nessa cidade. Sei, tenho certeza, que o inferno tem vista pro mar.
Foi assim, meu amigo, que você ligou para mim e, aos prantos, desabafou. Pediu que eu escrevesse o que você sentia naquele momento. Desespero. Desesperança.
O fisioterapeuta da filha, lhe contou um pouco sobre as emoções do tio . A sensação de desamparo que sentiu quando a irmã de Belo Horizonte faleceu, o choro e a saudade incontidos. Hoje, você consegue avaliar a carência afetiva desse homem que se escondia por detrás dessa imagem autoritária e prepotente.
Ao dar comida na boca da filha que vegeta há tantos anos, você consegue perceber como é fácil um pai enlouquecer de dor, revolta, impotência diante do fato consumado. E aí, nessa hora, você resolve fazer o que tem de ser feito.
O que já deveria ter sido feito.
Há muito tempo. E deveria ter sido feito por ele.
Por esse pai idoso, já insano e sem condições de tomar decisões lúcidas, sensatas e coerentes com a realidade.
Interna, no mesmo hospital onde ele está inconsciente, a filha e a mulher, para que tenham seus males diagnosticados, suas feridas curadas, seus sofrimentos abrandados por medicamentos, carinho e cuidados.
Sabe que a mulher sempre lutou por isso como pôde. E ela podia muito pouco. Sabe também que ele impediria você de fazer isso, se estivesse em condições de impedí-lo.
Você toma as providências necessárias, faz os pagamentos, compra uma cadeira de rodas, uma cadeira de banho, define com a fiel empregada o que pode e o que não pode ser feito.
Consegue da tia, que em sua idade avançada se mostra surpreendentemente lúcida e lhe passa algumas informações para facilitar a tarefa que lhe foi conferida, se orienta com advogados, foge dos interesseiros, procura prestar contas de tudo, busca a ética como sua meta principal.
Já se vão mais de três meses. Suas idas e vindas ao Rio vão se tornando rotina. Os fiéis empregados, agora os únicos amigos confiáveis, vão lhe dando as notícias, os médicos ligam para você. Os poucos e bons amigos dele também fazem contato e prestam solidariedade.
E você, meu amigo, hoje está mais consciente do seu papel.
Papel esse que você não escolheu. Mas que, por caminhos desconhecidos, acabou caindo em suas mãos. A verdade é que você tem sido forte o bastante para carregar esse fardo com serenidade, bom senso e coragem.
Saber como você se sentiu e ainda se sente é impossível.
Mas sei o quanto você gosta desse tio e que tudo fará de para proporcionar a ele o conforto e dignidade possíveis nessa atual situação. Sei que está com a consciência tranqüila do dever cumprido. Que sofre por não poder fazer mais por ele e pelas duas mulheres, que agora são parte intrínseca do problema e, de um modo ou de outro, dependem de você.
A confusão de sentimentos vai, vez por outra, bater à sua porta. E você vai saber lidar com ela.
Tenho certeza disso.
Um abraço.
Força e coragem!
junho de 2007
O tio faleceu no final do ano, a filha vegeta em uma cama e a mulher, agora saudável, vive com sua fiel empregada no apto que tem vista pro belo mar de Copacabana.
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