sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Recordar é Viver

" Amigos podem, com sua palavra e companhia, despertar ilusões e desejos de conhecer toda a magia do mundo."

Eles já vinham nos convidando, há tempos, para uma ida a São Roque e, no último encontro ficamos combinados que, no Carnaval, iríamos para o sítio que eles possuem próximo à São Paulo.

Já que convidaram, lá vamos nós... E vamos “de galera”. Uns vão de carro e, nós , de ônibus. Com direito à baldeação em Sorocaba. A rodoviária de BH estava simplesmente intolerável. Milhares de pobres brasileiros à beira de um ataque de nervos, indóceis, a espera dos ônibus que, definitivamente, não conseguiam vencer os engarrafamentos, já que todos queriam viajar ao mesmo tempo para aproveitar o feriadão de Carnaval. As plataformas de embarque apinhadas de gente. Sentados nas bagagens, homens (será?) se massageando sensualmente, mulheres gordas querendo matar os fiscais e embarcando na “marra”, pessoas estacionando enormes malas sobre os nossos pés, sem contar os inúmeros carnavalescos completamente alcoolizados que infernizavam a vida de todo mundo. O stress tomou conta de passageiros, fiscais e motoristas diante do caos instalado. Os ônibus saindo com duas, três horas de atraso. Terminada a maratona da rodoviária, a viagem seguiu normalmente, apesar da estrada bastante movimentada.

Próximo ao Anhembi o trânsito “engessou” de vez. Para nossa alegria e regozijo de alguns passageiros, as Escolas de Samba do Primeiro Grupo estavam acabando de desfilar e centenas de integrantes da Nenê de Vila Matilde se acotovelavam nos ônibus para voltar à periferia. Baianas, piratas, descobridores, príncipes e navegantes, índios, fantasmas e passistas seminuas davam o ar da graça, apesar de visivelmente cansados. O sol forte e o trânsito lento foram minando a nossa paciência, que nessas alturas já era escassa. Mais à frente, centenas de carros desciam para o litoral entupindo a estrada e aumentando a morosidade da viagem. Só por volta das nove horas chegamos a Sorocaba, onde embarcamos para São Roque.

O dono da casa foi nos buscar e logo, logo chegamos ao paraíso. A casa é ampla é decorada com o bom gosto característico da nossa anfitriã. Plantada entre extensos gramados, bem cuidados jardins e um pequeno bosque. A velha e florida quaresmeira se enfeitou de rosa para brindar a nossa chegada. Lá embaixo o azul da piscina em meio ao verde das plantas convidava para um mergulho. A área da churrasqueira, sauna e banheiros é localizada em um grande espaço com piso de ardósia. Mesinhas, cadeiras e simpáticos banquinhos forrados de couro convidam ao relax. Um balcão sugere a cerveja bem gelada, servida quase que imediatamente proprietário do paraiso. E é nesse espaço que anfitriões e convidados exercitam seu esporte favorito e a grande pedida da temporada é jogar conversa fora. O caseiro, antigo bar-man, nos preparou coquetéis de vinho tinto e champagne, eu fiz um macarrão seguindo uma receita da Beá, mas o carro-chefe do almoço foi mesmo o churrasco, feito com pompa e circunstância pelo chef . Desnecessário dizer que tudo isso foi acompanhado de cervejas, cervejas e mais cervejas super geladas.

Quase ao anoitecer a chuva começou a cair de mansinho. Mais tarde continuamos a conversa sentindo o aroma do orégano e queijo vindo das pizzas que assavam lentamente.

Lá pelas cinco e meia da manhã acordei e fiquei na varanda, estirada na rede curtindo o belo jardim, vendo um pica-pau, no alto de uma árvore batucando com o bico tronco endurecido.
Saímos logo após o café para o sítio de outros amigos. Uma luxuosa casa em fase final de construção numa área cercada de pinus e araucárias. Chope direto de uma chopeira dourada fez a alegria dos rapazes. O churrasqueiro contratado, especialista em carnes, nos deixou encantados com a habilidade no trato com as picanhas, lingüiças, costelas e lombos. O vinho italiano, geladíssimo, as uvas e ameixas frescas, salada verde de verdurinhas colhidas no dia nos seguraram à mesa por várias horas. Jogamos sinuca, conhecemos a criação de cabras e a cultura hidropônica, que é o chamego do dono que, aposentado, pode curtir esses raros prazeres. Só após outra rodada de pôquer, mais chope, charutos, golinhos de grappa, licores fantásticos, café expresso acompanhado da enorme simpatia dos nossos novos amigos, é que conseguimos, finalmente, tomar o rumo da Rodovia Raposo Tavares. Após nos perdermos e nos acharmos, chegamos ao sítio. Entre bêbados e perdidos acabamos encontrando o caminho ...

Logo na chegada uma das “meninas” protagonizou uma cena de “aracnofobia” e eu demonstrei extrema coragem ao exterminar com inseticida uma monstruosa aranha que invadira os aposentos da ex donzela recém casada. Na verdade o terror só não foi maior que o pânico demonstrado pelas crianças com a aparição de um demônio vermelho soltando fogo pelas ventas. Só se acalmaram ao descobrirem que o tal capeta não era senão o dono da casa com uma máscara de látex, comemorando o carnaval e recordando bons momentos da infância.

Todos querem aproveitar as últimas horas e não se cansam de recordar os fatos do passados, a infância difícil, a escola, a convivência com os primos, os casos engraçados, a avó – pessoa que marcou a vida de todos - os namoros de antigamente...

Nosso anfitrião, para ter realmente a certeza que iríamos embora, nos levou até Sorocaba onde embarcaríamos rumo a BH.

O carnaval de 2000 foi marcado pelo carinho com que fomos recebidos, as conversas ao pé da lareira, os banhos de piscinas, o churrasco, as boas risadas e os inesquecíveis momentos que passamos junto àqueles que queremos tão bem.

Esse post vai para o Kiko, agora em terras africanas e para a Beá que está em Sampa - amigos de fé. E para a Zélia, onde quer que ela esteja.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

ORQUÍDEA - FOTO


Essa orquídea estava seca e maltratada na casa de uma tia que não sabia como cuidar dela. Replantei-a numa velha bota e, agora, 3 anos depois ela está toda florida. Viva a natureza!
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sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Orquídeas

"Pra que lado sopra o vento? É uma brisa.
Arejado frescor, de orquídea em flor."

Volta e meia ganho um vaso de orquídeas. Adoro, mas não entendo nada dos mistérios dessa flor tão complexa quanto bela.Nosso amigo pantaneiro, incentivou-me a começar organizá-las. Então prendi algumas numa árvore grande que tinha bem na frente daquela rampinha que dá acesso à minha varanda. Raramente elas floresciam. Assim mesmo, timidamente, lá no alto. Não dava pra sentir seu toque aveludado, seu perfume exótico, sedivertir tentando encontrar uma figura no seu miolinho. Num dia de tempestade essa árvore rachou e precisou ser derrubada. Meu filho, de improviso, retirou as orquídeas, prendeu de qualquer jeito em alguns pedaços de xaxim e pendurou-as debaixo da minha cerejeira, na parede dos fundos da casa. Para nossa surpresa elas adotaram aquele lugar como sua casa e começaram a dar muitas e lindas flores. Sempre tenho um vaso florido. Fico toda orgulhosa! Elas não dão trabalho. O suspense é grande quando descubro algum botão. Demoram meses para desabrochar e mostrar suas cores e perfume. Nunca sei como serão as flores. Grandes? Pequenas? Brancas? Rosadas? Agora mesmo estou de olho em duas que, daqui há um tempo, vão me surpreender com toda a certeza.

Uma, bem pequena, meio esverdeada, delicada como ela só, tem cheiro de Gelol, uma outra exala forte aroma de chocolate e , vejam só, é marronzinha como uma barrinha da Nestlê...

Na Clínica de Fisioterapia tem um senhor, o nome dele é Paulo, que conversa muito comigo durante os penosos exercícios e tem me ensinado alguns segredos dessas plantas. Uma gosta de água gelada, outra, se polvilhada mensalmente com canela em pó fica mais perfumada, outra não suporta umidade, aquela tem de ser mantida longe de qualquer tipo de terra... Caprichosas, as mocinhas! Começo a colocar em prática o que vou aprendendo. Só não consigo, e acho que também não quero, saber nomes, famílias e gêneros... Sou amadora.
Essa semana mudei algumas para vasos e cestas, usando argila expandida, gravetos de pinho, farinha de osso e torta de mamona. Fiquei espantada ao descobrir que já tenho mais de vinte vasos... Vou começar a fotografá-las para saber qual é qual. Aí não vou mais ter tanta dúvida. E, com certeza, o elemento surpresa vai acabar. Será que vale a pena?

Esse texto vai para o João, que lá no Pantanal, cultiva tão belas flores. E para o senhor Paulo, paciente professor dos caprichos dessa flor ...

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Noite Italiana

" Reunir os amigos em volta da mesa, partilhar o pão, a alegria e as experiências vividas..."

Quando as duas voltaram da primeira viagem internacional, chegaram com um brilho diferente nos olhos, mudaram o jeito de falar, de andar e de vestir. Será que, tão poucos dias longe desse mundinho tupiniquim, tem o poder de transformar tanto assim duas pessoas? É muito pouco tempo...
Será que o trânsito por aeroportos internacionais, o romantismo de Veneza, o luxo e sofisticação de Paris e o carinho recebido em Verona, tiveram o poder de deixar as duas tão diferentes?
Acho que sim.
Sei do que elas são capazes. Tenho experiência. Mas... Dessa vez surpreenderam. Disseram que foi a mais nova que fez tudo sozinha. duvidando! Foi tudo perfeito demais. Devem ter contratado uma assessoria especializada.
Quando eu digo tudo, é TUDO mesmo! A mesa arrumada com a toalha xadrez com as cores típicas das melhores cantinas italianas, os pães rústicos, os queijos já cortados com estilo sobre a tábua, as uvas, os vinhos...
Os amigos foram chegando e se achegando à mesa farta. Timidamente, escolhiam uma cadeira, começavam a bebericar nas taças de cristal, tiravam lascas do queijo, elogiavam a bebida.
Um dos amigos, enólogo praticante, se intimidou com os vastos conhecimento do dono da casa sobre a formação geológica dos vinhedos nacionais, o microclima como fator predominante na excelência de algumas uvas, o tempo de maturação dessa e daquela casta, as características de cor e sabor, o aroma e o corpo dos chilenos e seu tanino marcante, as melhores safras dos argentinos da região de Mendoza... E os adjetivos? O que seria dos vinhos sem os adjetivos? Sutil, agudo, delicado, masculino, amadeirado, frutado, jovem, leve, intenso...
Alegria! Acabam de chegar da cozinha, as brusquetas, preparadas com técnica italiana, azeite extra-virgem, tomates, alho, manjericão e calabresa... Fumegantes. Deliciosas.
E a conversa corre solta. Acredito que o vinho contribui para soltar a língua e aquecer a alma. Ajuda a esquecer que o dólar subiu, o avião caiu, a Bolsa despencou, o Lula discursou e a Evi casou e mudou....
E é graças a ela é que hoje estamos aqui neste festival gastronômico. Foi uma overdose de sabores. A “pasta” divina, no ponto certo de cozimento, quente como deve ser, o tempero perfeito, o aroma sutil do Marsala misturado ao manjericão... Nessa hora, o assunto foi minguando. Todos muito ocupados em conseguir enrolar no garfo o spaguetto. Claro que ninguém se atreveu a cortá-lo com a faca. Seria um sacrilégio imperdoável.
Acha que acabou? Nada disso, lá vem a menina, já com jeito de “mamma”, toda poderosa, trazendo o sorvete e as caldas de mirtilo, lampone e morangos. E ainda tem o vinho próprio da sobremesa. Doce, requintado, dourado...
Será que o enólogo de plantão concorda com esses adjetivos?
No final ainda presenciamos a entrada triunfal de um bolo de aniversário para uma das convidada, parabéns pra você, presente e abraços.
Eu disse que elas mudaram... E mudaram mesmo. Agora não recebem mais com sotaque do norte de Minas, com aquele jeito doce de quem veio de lá. O sotaque agora é outro. Vem do outro lado do Atlântico.
O coração , no entanto, veio maior, compartilhando com os amigos a alegria das novas terras recém descobertas...


Este texto foi escrito em 18/08/2007 e vai para a Marlene e Ana Paula, duas meninas que trouxeram da Europa , a Itália guardada num cantinho do coração.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Crônica de uma Mãe Urbana

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é CORAGEM" Guimarães Rosa


Na Semana Santa de 2003, finalmente, fomos para Planaltina, próximo do Distrito Federal, visitar nosso filho caçula, que estava morando na Reserva Ecológica de Águas Emendadas onde desenvolvia seu Projeto, com vistas à sua dissertação do Mestrado.
O cerrado e suas árvores retorcidas, a terra vermelha, o perfume do araticum maduro e o canto dos pássaros têm realmente uma certa magia. Os lugares são lindos. As veredas de buritis, alagadas pelas últimas chuvas, empresta ao lugar um certo ar de encantamento. Os pés de pequi estão por toda parte e prometem fartura nos próximos meses. Pequenos arbustos de murici, araçá e cagaita estão floridos a espera dos frutos doces e cheirosos. A vegetação mais densa e úmida da mata de galeria contrasta com a mais esparsa da reserva. É ali que os gaviões e mamíferos, mais difíceis de serem vistos, vivem e se reproduzem.
Fomos à área onde o Leo desenvolve seu trabalho e pudemos ver de perto os pássaros capturados na fina rede de seda e anilhados por ele e seus colegas pesquisadores. Fotografamos os filhotes de uma coruja bem grande, que ficou de longe nos olhando ameaçadoramente enquanto os pequerruchos eram examinados. Me diverti com os bandos de papagaios barulhentos, me encantei com o casal de pica-paus do pescoço dourado, com as tesourinhas, beija-flores e outros tantos pássaros com suas penas de colorido exuberante. Vi ninhos ocupados por pombas silvestres e seus ovos branquinhos, que foram cuidadosamente medidos, outros enormes, como os dos graveteiros, por aqui chamados de guaxos, e pude sentir toda a força de uma natureza protegida e preservada. Ouvi os relatos dos encontros com os lobos guarás, com os tamanduás-bandeira, com a suçuarana, com a cascavel e com a perigosa jararaca. Vi um tatu galinha, que se virou rapidamente e sumiu por dentro do mato entre uma nuvem de poeira vermelha e, com o susto, senti o quanto somos urbanos e mal preparados para esse tipo de vida. Receamos pela segurança do filho querido, esquecendo-nos que atravessar o centro da cidade ou mesmo ir para a Universidade é uma aventura bem mais arriscada que conviver com o canto dos pássaros, com os horizontes tingidos de rosa, com o calor do sol e com a doce agressividade do cerrado brasileiro. Realmente é um lugar diferente do caos das metrópoles onde nos acostumamos a viver. Sabemos que riscos existem, lá e aqui. Que viver é algo extremamente perigoso. Mas numa reserva ecológica os riscos são calculados, enquanto que nas grandes cidades não temos segurança nem pra chegar até a esquina, temendo um assalto ou uma bala perdida.
Interessante notar que, apesar da enorme quantidade de bichinhos como mariposas de todos os tamanhos, abelhas e vespas, formigas e besouros, lagartas e cigarras, os pernilongos e carrapatos não existem por lá. As aranhas são enormes e assustadoras e sempre dão as caras nos lugares mais escondidos da casa e mesmo no meio do mato, entre as folhas secas espalhados pelo chão.
Apesar da saudade que sentimos do Leo, sabíamos que ali ele estava feliz, realizando um sonho e um projeto super importante para seu futuro. Foi ótimo poder partilhar com ele seu novo habitat, foi bom ver como encarou com garra, responsabilidade e competência o trabalho pesado do campo e o trabalho intelectual exigido pela pesquisa que estava realizando. Foi muito bom poder compartilhar sua alegria ao descobrir um novo ninho a ser registrado, o canto de uma ave até então desconhecida , uma pegada na terra vermelha: - Será um teiú? Um tatu? Um veado?
E depois... cozinhar, descongelar a geladeira, enterrar o lixo orgânico, separar o lixo seco a ser levado para a cidade, trancar a casa, preparar a "matula" para o dia seguinte, lavar a louça, fazer as compras em Planaltina, estudar, estudar, estudar...registrar o trabalho do dia...anotar...rever anotações e ler..ler... e ler mais um pouquinho antes de, finalmente, ir dormir. Dormir para acordar às 4 horas, em plena madrugada,vestir a roupa de campo, pegar a bicicleta e seguir, com uma lanterna na cabeça , para a área de pesquisa, que fica distante 10 quilômetros da casa onde mora. Ainda resta uma grande extensão de “picadas” a serem abertas com o facão, apesar dos muitos já abertos e que deixaram as mãos do rapaz cheias de calos e cortes.
Tenho certeza que ele ainda tem muito a aprender e muito mais a ensinar aos pais que não conseguem esconder o orgulho de tê-lo como filho.
Nosso filho é nosso herói!!!

Para o Leo, passarinheiro de carteirinha e viciado em biologia....

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Passos de Anchieta

" De todos, o caminho mais longo é o que leva da mente para o coração."
Eu, Miriam, Raquel e Márcia resolvemos fazer a caminhada coordenada pela ONG Abrapa (Associação Brasileira dos Amigos do Padre Anchieta) em Junho de 2001. Fizemos o mesmo trajeto que o padre Jesuíta fez a mais de 400 anos. São aproximadamente 105 quilômetros.
Diante da Catedral Metropolitana de Vitória, pegamos nossas credenciais (onde seriam carimbadas as diversas etapas vencidas), bonés e camiseta com o mapa do caminho a ser percorrido e já sentindo o clima dos próximos três dias. Muita gente reunida, animada, participando do aquecimento, tentando se enturmar, rindo e cantando durante a bênção dada pelo padre, que desejou uma caminhada tranquila e sem transtornos.
A procissão "se arrastando que nem cobra pelo chão", desce até o porto, passa em frente ao Palácio do Governo até chegar aos ônibus que nos tirariam da Ilha. São quase três mil pessoas. Enormes filas, sem reclamações, sem estresse, sem mau humor. Descemos em Vila Velha e começamos a subida até o Convento da Penha, pela Ladeira das Sete Voltas. Caminho penoso e de aclives acentuados tornam o trecho bastante cansativo. O silêncio só é quebrado pelo canto dos pássaros e o arquejar dos caminhantes. Lá de cima se descortina uma paisagem de tirar o fôlego. Descemos por outra estrada e, na área privativa o Exército, uma banda nos aguarda, dando as boas vindas e os soldados mais bonitos do batalhão ficam em posição de sentido, demonstrando apreço aos peregrinos.
Morro Moreno, praias da Ribeira e da Costa, travessia da Ponte da Madalena toda enfeitada de buquês de flores pelos moradores que nos aguardavam, Barra do Rio Jucu... A chuva começa a ameaçar nossa próxima etapa. Os pés doem, a musculatura das pernas parece em brasa e a cãibra ameaça a Raquel. Vamos em frente que atrás vem gente...
Em cada ponto de parada, enfermeiros, bombeiros e voluntários cuidam dos pés dos caminhantes. Furam as bolhas, fazem curativos, massageiam os mais doloridos, dão conselhos, incentivam, oferecem frutas e água. Sorriso e solidariedade é o que não falta. É como se fôssemos parentes ou velhos amigos. Os últimos quilômetros foram difíceis, mas afinal chegamos na Ponta da Fruta. Fomos saudadas com fogos de artifício, tapete vermelho, flores e um belo rapaz, vestido de Padre Anchieta, abençoava quem conseguiu chegar. A Miriam beijou-lhe as mãos.
De carona, fomos direto para a Pousada que reservamos por telefone. Mofo à vontade, banheiro meio limpo-meio sujo e camas razoáveis. Pelo menos isso. Obedecendo à Marcia, que é médica, fizemos vinte minutos de alongamento, jantamos ali perto e trocamos idéias sobre o caminho e as dores de cada uma.
Às cinco horas acordamos, fizemos mais alongamento e fomos tomar o café. Ali ficamos sabendo que essa era uma etapa difícil. Já havia andarilho com pé enfaixado, cajados e bengala para apoio e joelhos inchados. Recebemos um pequeno lanche para levar e começamos a jornada. Cada um caminha no seu ritmo. O importante é chegar.
O Parque Ecológico Paulo Vinhas é uma reserva que reúne Mata Atlântica, restinga e algumas lagoas. Biólogos nos pedem para não pisar fora da trilha para não estragarmos a frágil vegetação. Todos em fila. Ninguém ultrapasssa ninguém. As pessoas conversam com quem está às suas costas ou à sua frente, sem ver o rosto do interlocutor. O que importa é vencer obstáculos com cuidado para não cair. E, se cair, o companheiro de jornada, com certeza, vai ajudar. Se alguém precisa fazer xixi, avisa e ninguém se vira para olhar. Não tem onde se esconder. É praia de um lado e vegetação rasteira de outro. Existe um acordo tácito entre as pessoas. A areia fofa dificulta a caminhada. Por fim chegamos à Lagoa dos Caraís. A água é fria, cor de coca-cola, mas não podemos parar mais que dez minutos para não agravarmos as dores musculares. Um caminhão de cocos verdes e gelados nos aguarda. Logo estamos pisando as areias da Praia de Setiba Pina (Setibão). Muita gente se aproxima dos andarilhos, oferecem fruta, água e sorrisos.
Raquel não consegue mais andar por causa das cãibras. Vai de ônibus para Guarapari, nos esperar no hotel. "A mais difícil de todas as decisões: Voltar atrás - não para desistir, mas para começar de novo. Recomeçar."*
Setiba, Santa Mônica, Perocão e sua ponte também enfeitada de flores e fitas. Depois de longa e exaustiva subida, entramos na mata por uma trilha estreita e perigosa. Descemos por uma imensa pedra, coberta de cactus, arriscando a escorregar, até chegarmos às Três Praias de águas azuis e calmas e bares acolhedores.
Seguir adiante é a palavra de ordem. As dificuldade profetizadas em Ponta da Fruta começam a se materializar. O grande bloco de pedra a ser transposto é meio assustador. A maré baixa nos favorece. Não há a opção de voltar e as fendas profundas são mesmo perigosas. Custamos a vencer esse pedaço do caminho até chegarmos à Praia da Cerca e a Praia do Morro, nossas velhas conhecidas que estavam mais compridas do que nunca, pelo menos para nossos corpos cansados e nossos pés doloridos. Só conseguimos o carimbo na credencial na Praia das Areias Pretas. No hotel, a Raquel nos esperava dormindo. Alongamentos, gemidos, risos, banho, fome. Muita fome! No Max Peixadas, as panelas de barro fervilhantes com a moqueca capixaba, o pirão, a pimenta e o chope gelado nos dão o conforto e o alento que precisamos nesse momento.
Cinco horas e já de pé para novos alongamentos. Untamos os pés com vaselina liquida e envolvemos cada dedo com esparadrapo, pois as temíveis bolhas já estão presentes, para nosso tormento. Saímos em direção ao Edifício Center, de onde se tem a melhor vista de Guarapari. Lá de cima vemos a Praia do Ipiranga e do Riacho, a Samarco, onde os navios recebem todo o minério para o exterior. Agora é caminhar pelo asfalto e caminhar por ele é arriscado. A tensão domina todo o grupo. Os criadores de cavalos Campolina nos acompanham por um bom tempo, tocando o berrante de quando em quando. Enseada Azul, Meaípe, Lagoa de Maembá. Um grupo de motociclista nos incentivam. Aplaudidos, os caminhantes prosseguem debaixo de uma garoa fria. Por uma estradinha de terra chegamos à Praia do Ubu, onde crianças vestidas de índio nos aguardam para fotos e mais sorrisos. Pescadores de aparência modesta nos oferecem graciosamente pipocas, mamão e água. Agradecemos e tocamos em frente. Ainda tem muito chão a ser vencido. Descansamos por alguns minutos num lugar chamado Guanabara, uma linda pousada amarela, uma praia de rara beleza e mais carinho para quem se sente no limite da exaustão. O caminho agora é ladeado por pequenas árvores, casebres cobertos de palha, um coqueiro aqui e ali, vacas magras pastando mansamente.
Praia dos Castelhanos, tempo fechado. Eu já me sentia um passarinho de tanta fruta comida pelo caminho... Agora começa a reta final. Descemos vagarosamente pra Anchieta. A praia é feia, barrenta, destruída pela última ressaca. Tirei a sandália. Não aguento as dores na bolha estourada. Vou de meias até o final.. O povo da cidade se mostra alegre, aplaude quem chega, oferece o que tem. Água, maçã, chá...
O Santuário de Nossa Senhora da Assunção fica pequeno pra tanto caminhante. Voluntários ajudam a quem precisa de massagem, curativos nas bolhas dos pés e das assaduras nas coxas dos mais gordinhos. Todos, apesar de exaustos, estão felizes. Rezamos um pouco, pegamos nosso diploma de peregrino e fomos para o hotel. Pagamos cinco Reais para tomar um banho e trocar de roupa.
Esperamos pelo táxi num modesto restaurante onde comemos alguns ovos fritos e um macarrão horroroso, com cerveja gelada. Fomos direto para o aeroporto de Vitória onde embarcamos pra Belo Horizonte.
Aprendemos que a solidariedade é uma lei do caminho. Outra é a humildade de pedir ajuda.
"Uma travessia não termina em qualquer lugar, mas num ponto preciso, escolhido e alcançado. Enquanto não se toca esse ponto , travessia nenhuma existe." *
Este post vai para a Miriam, que durante todo o percurso nos proporcionou ótimos momentos, risadas descontroladas e piadas inéditas, como a do caixão cor-de-rosa.
* Paratii - Amir Klink

domingo, 23 de setembro de 2007

BONANÇA - Eu conheço. E você?

" Ardia aquela fogueira, que me esquentava a vida inteira, eterna noite, sempre a primeira festa do interior" Moraes Moreira/Abel Silva
Estava curiosa para participar de uma festa do interior.
Praticamente me ofereci para ir com a família "festeira" para Bonança, antiga Palmeira, município de Ibiracatu, distante quase 200 quilômetros de Montes Claros. Quarenta são de estrada de terra, melhor dizendo, de areia. Solta, vermelha e muito fina. Depois de muito preparo, três mil bandeirinhas de papel de seda, trocentos metros de correntes de crepon colorido, arrecadação de dinheiro com os amigos e parentes, confecção de bonecos para a decoração do salão, organização das roupas recebidas em doação e compra das prendas para as crianças partimos dia 28 de junho de 2003 para a tão esperada festa de São Pedro.
Um pneu furado fez a alegria do Marcelo e do Leo que tiveram de brigar com um porta-malas lotado, um parafuso teimoso e o sol escaldante do sertão.
Bonança é um pequeno povoado, com uma igrejinha amarela plantada no meio de um conjunto de casinhas pequenas, uma caixa d´água, uma quadra de esportes e uma construção pintada de azul, que é o salão de festas recém-construído. Três grandes e frondosas árvores, uma das quais plantadas pelo velho José Vicentino Ferreira, avô da Renata há mais de quarenta anos, bancos de madeira e um velho carro de bois. Tudo avermelhado pela areia fina, que é uma constante na vida de quem mora no lugarejo. As casas são rente à rua, janelas e portas de madeira, muitas sem muros. Os jardins são plantados com as poucas flores que resistem ao clima quente e seco. Os carros são raros. Alguns cavalos descansam à sombra, moradores curiosos chegam às janelas, outros acenam para quem chega, com o melhor dos sorrisos. Descemos do carro e já encontramos a Orlene limpando a entrada de casa e nos recebendo com alegria. Quase que imediatamente entra a Marlene e mais de uma dúzia de pessoas gritando e rindo, nos abraçam com carinho enquanto os foguetes de boas vindas sobem aos céus, anunciando para todos da cidade que acabamos de chegar.
Em Bonança a vida corre lenta. O vilarejo é apenas um amontoado de casinhas em volta de uma igreja muito simples e antiga e uma quadra de esportes construída por algum político da região. Para a festa deste ano foi construído um salão de festas, também no meio da vila. A areia que cobre todas as ruas é vermelha e entra nos olhos, na boca e cobre tudo que você vê, comida, roupas, cabelos... O vento sopra com força e espalha os grãozinhos por todos os cantos de Bonança. Ali se cria gado e a lavoura é muito pobre. A seca impera no norte de Minas, principalmente nesta época do ano. Se a cidade é minúscula, o coração de seus moradores é maiúsculo. Recebem com prazer, acolhem a todos com um sorriso e a inesgotável disposição para um dedo de prosa. Com linguajar típico nos contam histórias do passado, sempre com aquele tom mineiro, cheio de mistérios e superstições.
Fiz coisas que jamais pensei em fazer: estiquei cordões de bandeirinhas coloridas em plena rua, enfeitei um jegue (uma jeguinha?) para a cavalgada de São Pedro, ajudei e ornamentar o mastro do padroeiro com papel crepon nas cores do santo, participei de um leilão onde se podia arrematar doces, bandejas de comidas, carnes assadas, bezerros amarrados a postes de madeira e os lindos pés de bala, que são galhos de pereira enfeitados de papel de seda e cheios de balas, amendoins e pipocas, a exemplo das árvores de natal. Esses pés de bala são tradicionais na festa de São Pedro. Segui a procissão, ouvindo os cantos tradicionais e admirando as pequenas velas de cera de abelha jataí, acesas nas mãos dos devotos, espalhando seu cheiro característico, um misto de mel e fumaça.
A festa incluía comida e bebida para todos da cidade, oferecidos pela família "festeira" Amador de Melo, além do café com biscoito. Nunca vi tanta comida. Um boi foi sacrificado para a ocasião e preparado com arroz, no fogo de chão espalhados pelo quintal da casa, debaixo das velhas laranjeiras e pés de pinha. Biscoitos de peta, ginete e de goma fizeram a alegria da criançada. Todos, apesar da humildade do lugarejo, aguardavam o que lhes era oferecido com tranqüilidade, conversando com os amigos e curtindo aquele momento tão raro de alegria e confraternização. E a dona Geralda não queria que os convidados (a cidade inteira), fossem servidos através da janelinha de uma das casa. Queria que todos entrassem na casa. Como? Eram mais de quinhentas pessoas... Mas pelo menos as amigas dela tiveram de entrar e sentar para serem servidas, atendendo a exigência da matriarca.
No dia seguinte à festa, fui junto com o Leo, a Renata e algumas crianças da região num lugar incrível, chamado Chupa. É uma longa caminhada onde se percebe claramente a fusão entre o cerrado e a caatinga. Nunca tinha visto este tipo de vegetação e fiquei observando aquelas árvores secas e cobertas de espinhos, que parecem mortas, mas que com as primeiras chuvas vão explodir em brotos, flores e sementes. O Chupa é um enorme abismo de pedra lisa por onde corria um rio caudaloso e que hoje encontra-se totalmente seco. Pelo que contam os antigos moradores havia ali um redemoinho onde as pessoas eram chupadas e acabavam morrendo, engolidas pelas águas. Meu filho, as crianças e a Renata desceram ao fundo da grota e andaram até onde existe um impressionante paredão cheio de centenárias barrigudas, que são árvores enormes e típicas da região. Faltou coragem para que eu os acompanhasse nesta pequena aventura.
Foram três dias de muita festa, forró, crianças felizes com o movimento de pessoas estranhas. comida boa, cerveja gelada, picanha gorda (de dois pelos) e carne de sol assadas na brasa e a famosa cachaça da região.
A viagem de volta demorou doze horas. Voltei pensando no tamanho desmedido desse nosso país, na falta de recursos e de conforto desses brasileiros que sobrevivem aos políticos e suas promessas jamais cumpridas, nos seus hábitos tão diferentes, na pureza de sua alegria ingênua e, principalmente, na hospitalidade dessas pessoas que não têm nenhum receio de abrir suas casas e corações para os forasteiros. Não existe neste sertão das Geraes a desconfiança, a pressa, o medo e insegurança que vivenciamos no dia-a-dia das grandes cidades.

Esse post vai para a Evilane, que lá da Itália, ainda chora de saudades desse lugarzinho que fica , segundo ela, "atrás do mapa".